Há 77 anos Jorge de Sena estreava na literatura com seu primeiro livro de poemas, Perseguição. Publicado pelos Cadernos de Poesia, o livro surgiu como fruto da boa vontade de amigos do autor, que se mobilizaram para tornar a edição possível, ainda que em pequena tiragem. Contava então Sena 22 anos e, segundo o próprio, escrevia poemas desde 1936, além de alguma ficção e algum teatro. Por aí já temos um exemplo da precocidade deste autor e de sua espantosa apetência para escrever, que nunca esmoreceu, até o fim da sua vida. O livro, dentre outras características, destaca-se por fazer uso de algumas práticas surrealistas, já em voga no restante da Europa, mas ausentes do meio literário e artístico português. Daí a reivindicação de Sena de ser “surrealista antes que houvesse surrealismo em Portugal”. O procedimento de mesclar abstrações e “palavras concretas” revela-se com bastante clareza num dos seus versos mais conhecidos: “Cria-se da angústia uma cadeira para assistir à noite” (“Noturnos”).
É um processo semelhante o que vemos no poema “Felicidade”, no qual a própria felicidade “sentava-se no peitoril da janela” e apresentava “feições de menino inconsolável”. Neste caso, a felicidade não se apresenta como ideia ou alegoria, mas como um “menino impúbere”, mostrando o seu aspecto infantil, incerto, imaturo, “ainda sem amor para ninguém”. Dessa forma, a ideia ganha em concretude, principalmente por ser apresentada numa imagem cotidiana, comum, de menino. Por sinal, a figura do menino é recorrente em Sena: vide o menino Jesus de “A razão do Pai Natal ter barbas brancas” ou o menino inominado (mas autobiograficamente referido) de “Homenagem ao Papagaio Verde”, queocorrem em sua obra ficcional como indicadores de uma pré-formação, uma abertura ao mundo, uma descoberta da beleza. E é neste mesmo volume Perseguição onde se lê o verso “as crianças nascem com uma coragem que perdem” (“Andante”), que o próprio autor, numa carta a Sophia de Mello Breyner Andresen, afirma ser um dos essenciais da sua poesia. Esta felicidade-menino, então, aparece espantada com o próprio nome. Uma espécie de espanto de as coisas terem um nome, mas também o mistério face ao que seja felicidade. Afinal, como defini-la em termos precisos? É este mistério e esta coragem de vivê-lo poeticamente, tal qual um menino, que constroem a imagem de uma felicidade por criar na poesia, na interrogação do próprio nome.
Ouçamos, agora, este poema na voz do próprio autor: