Sobre “Ó Doce Perspicácia dos Sentidos”

Breve comentário de Lucas Laurentino (UFRJ)

Jorge de Sena é um dos grandes sonetistas em língua portuguesa do século XX. Seu livro As Evidências – poema em 21 sonetos (1955) é exemplar, pois consiste numa sequência em que cada poema apresenta uma variação estrutural da forma fixa. Além desse exercício magistral, os posteriores sonetos a Afrodite Anadiómena (1961) estão entre os poemas mais inventivos e complexos da sua produção.

A prática da escrita de sonetos atravessa toda a obra seniana e bem representativo é o poema, de 1947, “Ó doce perspicácia dos sentidos” (Pedra Filosofal). Além de ser um dos sonetos mais bem acabados do autor, explora temática de grande importância para Sena: o erotismo. Numa primeira aproximação ao texto, logo notamos a sinestesia como elemento marcante de sua estruturação. Os cinco sentidos são convocados para dar corpo ao movimento erótico: o “doce” do paladar; a “visão mais táctil”; o “olfacto” que “ouve”. A combinação das percepções confere um sentido de progressiva descoberta dos corpos “na treva” e imprime movimento às ações, ativas na busca sôfrega, “apressada”, pelo outro. A própria organização fônica do poema é uma verdadeira exploração sensorial, através da articulação da boca que o declama. No primeiro verso temos a recorrência das consoantes sibilantes, dando um tom sussurrado à pronúncia; já nos dois seguintes, são as oclusivas que ressaltam, em contraste direto com as anteriores; no quarto as sibilantes retornam e fecham a estrofe em consonância com o esquema rímico. Tal disposição de sons e articulações performa o jogo erótico de movimentos e pausas bruscas, como se os corpos pouco a pouco se descobrissem.

Esta relação de sibilantes e oclusivas se estende para o restante do poema, e se acentua em versos como “gostsalgado em curvas sem segredos”, no qual a alternância se opera dentro do próprio verso, intensificando o entrelaçamento dos corpos, acelerando o movimento erótico que se desenvolve. Dessa maneira, só pela dimensão fônica já sentimos a materialização dos corpos que interagem eroticamente. Esta experimentação – pode-se dizer – é levada ao extremo nos chamados poemas assêmicos (dos quais os sonetos a Afrodite são os maiores representantes), nos quais as associações suscitadas pela articulação de determinados fones se comunicam diretamente com a percepção, sem passar pela usual mediação do significado das palavras. Tais poemas são eróticos não por congregarem palavras deste campo semântico, mas porque expressam o erotismo de maneira performática. O soneto em pauta, apesar de não chegar a esse extremo, trabalha fortemente com tais associações, e o sentido do movimento sexual é reforçado pela escolha lexical que combina as diferentes áreas da percepção, como que ampliando o alcance dos cinco sentidos… até à temperatura (“perfume túrgido, macio, tépido,/ sequioso de mão gélida e tremente…”). As combinações sinestésicas “visão mais táctil”, “só o olfacto os ouve”, “ásperos rangidos”, “perfume túrgido, macio” exercem grande influência nas sensações sugeridas ao leitor, insinuando o contato íntimo entre corpos que se constituem na relação. São os “corpos repetidos”, “corpos tão fingidos”, sem determinação sexual, movidos apenas pela atração que um exerce sobre o(s) outro(s) e que se mostram inteiramente, oferecendo-se à apreciação de todos os modos possíveis, indicando que o sentido do erotismo é uma entrega do corpo inteiro, a continuidade almejada entre seres descontínuos, de tal maneira que não fica explícito no texto onde um corpo começa e onde acaba, mas que “se ligam, mancha a mancha, lentamente…”.

O poema se encerra repetindo o primeiro verso, num caráter cíclico, reproduzindo linguisticamente esses “corpos repetidos” que se insinuam ao longo das estrofes. Assim, a “perspicácia dos sentidos” é mais que mera percepção que pode ser codificada racionalmente, é uma forma de apreensão, conhecimento, descobrimento de si e do outro. O próprio processo de humanização está implicado neste movimento, o que corresponde à compreensão de Sena do erotismo como uma forma de se expressar e alcançar a dignidade humana, um dos valores mais prezados pelo poeta.

Ouçamos, pois, este poema na voz do seu autor: