Sobre “Camões dirige-se aos seus comtemporâneos”

(Breve comentário de Lucas Laurentino, UFRJ)

Neste próximo dia 10 comemora-se o “Dia de Camões”. Instituída no século XIX, esta data pretende celebrar a obra do autor, considerado por muitos o maior poeta português, cuja epopeia fixou a nossa língua literária, além de figurar como o expoente máximo dos valores da cultura então vigentes. No entanto, justamente pela sua importância, Camões foi manipulado ao longo dos séculos pelos mais diversos interesses políticos, de defensor da causa republicana a justificador do fascismo salazarista, tendo sua obra sido lida, e por vezes mutilada, de acordo com variadas inclinações ideológicas.

Jorge de Sena, para quem Camões fora um dos maiores poetas de todos os tempos e latitudes, dedicou-lhe grande parte da sua vida acadêmica, o que se reflete em cerca de duas mil páginas ensaísticas, desde conferências e artigos até grossos volumes de análise e crítica. Além disso, exemplos do que ele escreveu de melhor em matéria de ficção e poesia retratam Camões, seja no conto “Super Flumina Babylonis” (Antigas e Novas Andanças do Demónio), seja em “Camões na Ilha de Moçambique” (Poesia III), ou em um dos seus mais conhecidos poemas, “Camões dirige-se aos seus contemporâneos” (Metamorfoses), no qual assume a voz do poeta quinhentista fazendo-o verberar ferinamente contra as apropriações de sua vida e obra e lançar, tal como o épico Adamastor, maldições contra os que o roubaram (e seguem roubando…) movidos pelos intuitos mais mesquinhos.

Ouçamos, pois, este poema na voz de Sena:

Sobre “Paraísos artificiais”

(Breve comentário de Lucas Laurentino, UFRJ)

A relação de um sujeito com o lugar em que nasce não costuma ser algo evidente. Não há qualquer indício de uma predisposição para amar a terra natal mais do que odiá-la, ou mesmo ser indiferente a ela. O que acontece, por via de regra, é uma educação cultural que conta aos mais jovens a história do seu lugar de origem e os ensina a se sentirem orgulhosos por pertencerem a ele. No entanto, somente quando se toma certa distância é que se pode refletir sobre este lugar de nascimento e vê-lo sem as lentes distorcidas de uma visão que se quer patriótica ou nacionalista.
Jorge de Sena sempre revelou problemas com a ideia de uma identificação plena ao seu Portugal. Em sua poesia, procurou pensar o país em que nascera a partir de suas contradições e discursos oficiais (do salazarismo). Daí que em um dos seus primeiros livros de poesia, Pedra Filosofal, encontramos como poema de abertura “Os paraísos artificiais”, de 1947, no qual há um demorado olhar sobre a sua terra natal e um questionamento da celebrada nostalgia, do amor à pátria, da sua idealização. Dialogando com Baudelaire pelo título e com Gonçalves Dias pelo seu começo “Na minha terra…”, Jorge de Sena constrói, com ironia, uma poderosa crítica ao nacionalismo ignorante, à censura, à hipocrisia de um discurso que se descola da realidade para vender uma imagem falsa de nação, enfim, a tudo aquilo que cerceia a liberdade do sujeito de ser e de criar.
Ouçamos, então, este emblemático poema na voz de Mário Viegas:


Sobre “Como tu queiras, amor…”

(Breve comentário de Lucas Laurentino, UFRJ)

Na poesia portuguesa o tema do amor, assim como outros, se encontra indissociável da figura de Camões, um dos maiores e mais profundos cultores do amor não só como sentimento humano mas também como uma divindade atuante que pode tanto ser a via para um conhecimento superior quanto ser entidade punitiva que condena aqueles que o perverteram. A Ilha dos Amores é uma das máximas realizações camonianas no que toca esta temática e muito da sua lírica versa a respeito das contradições decorrentes da relação entre o Amor e os amantes.

Jorge de Sena é um herdeiro direto desta visão de Amor, partilhando com Camões principalmente a compreensão da vivência amorosa como forma de humanização e acesso ao conhecimento. Na sua obra não faltam exemplos de poemas que abordam a experiência corporal do amor, as diferentes formas de amar, o erotismo nas suas mais diversas acepções. Poderíamos, inclusive, fazer uma pequena distinção entre poemas que tratam desta temática de forma abrangente e reflexiva, como “Amor” (de Peregrinatio ad Loca Infecta) e “Arte de Amar” (de Exorcismos) e aqueles em que o eu-poético se afirma numa relação com um tu direcionado, como “Tu és a terra” e “Conheço o sal…” (de Conheço o sal… e outros poemas). Outro exemplo desta maneira de tratar o Amor e o ser amado por um tu é o poema “Como queiras, Amor, como tu queiras”, de Post-Scriptum, em Poesia I.

Ouçamos, pois, este poema na voz do autor junto com imagens dele e de sua esposa e viúva, Mécia de Sena:

Sobre “A chuva torna”

 (Breve comentário de Lucas Laurentino, UFRJ)

A percepção sensorial do mundo em volta e a relação entre os acontecimentos exteriores e os estados de espírito do sujeito não raro foram abordados por poetas ao longo do tempo. Por vezes esta relação se mostrou harmônica, com o ambiente calmo e ameno respondendo à disposição do poeta de encontrar um equilíbrio de sentimentos, e em outras ela se revelou tensa, com a aparente calma externa sugerindo uma indiferença da Natureza às questões humanas mais profundas. Exemplo disto é o famoso soneto camoniano “O céu, a terra, o vento sossegado”, no qual o ambiente silencioso e pacífico não responde ao sofrimento do pescador que perdeu a sua amada. Em outro ponto estão os poemas que compõem a “Chuva Oblíqua”, de Fernando Pessoa, marcados pela intersecção entre o dentro e o fora, o eu e o outro, o mar e a terra.

Outra chuva, no entanto, é aqui cantada. Jorge de Sena, que não se furtou a escrever sobre as suas circunstâncias imediatas (vide “Os Paraísos Artificiais”) nos mostra em um poema intitulado “A Chuva Torna” (de Fidelidade) o progressivo diálogo entre um dado natural, a chuva  (não aquela que vem, mas sim a que tinha ido e agora volta, trazendo consigo algo mais), e uma disposição do sujeito que se põe a ouvi-la: “se apurar o ouvido, eu ouvirei contínua/ e vertical na noite calma que só ela/ corta.” Este eu-poético aproxima-se da chuva no seu cortar — “Também em mim, como na noite, corta/ alguma coisa.” — e pouco a pouco o pingar se torna constante, conduzindo o fundo sonoro à fusão  simultânea com as reflexões do eu.

Ouçamos agora este belo poema na voz de Hugo Cunha.

Sobre os poemas “incompreensíveis” de Jorge de Sena

 (Breve comentário de Lucas Laurentino, UFRJ)

Os chamados poemas “incompreensíveis” de Jorge de Sena representam uma parte de grande importância da sua obra, ainda que em termos quantitativos não sejam tão significativos. Como frisa em seu prefácio a Poesia III,  ao comentar a publicação de Peregrinatio ad loca infecta —  “é um livro cheio de continuidades e cheio de experiências e de experimentalismos (como os anteriores o foram sempre)” –, a sua obra, tanto poética quanto ficcional (e também crítica) é atravessada pela experimentação, principalmente a formal e linguística.

Assume, portanto, o caráter experimental de um dos seus livros mais estudados, Metamorfoses, ao encerrá-lo com os “Quatro Sonetos a Afrodite Anadiómena”, talvez os poemas mais conhecidos dessa linhagem “assêmica” ou “incompreensível”. Com eles Sena pretendia “que as palavras deix[ass]em de significar semanticamente, para representarem um complexo de imagens suscitadas à consciência liminar pelas associações sonoras que as compõem”, conforme diz no posfácio ao mesmo livro. Nesse caso, a percepção sonora das palavras ganha prioridade em relação à sua contraparte significativa e é através da audição (e também da articulação vocal) que se entra em contato com a dimensão mais penetrante do poema. 

Assim, nada melhor que ouvir um desses sonetos pela voz do próprio autor.

Sobre “Ode aos livros que não posso comprar”

 (Breve comentário de Lucas Laurentino, UFRJ)

Para quem sempre amou a leitura e os livros, uma das sensações mais frustrantes é justamente a de vê-los expostos (física ou virtualmente) e não dispor do dinheiro que possa comprá-los. Ainda que haja bibliotecas e amigos para eventuais empréstimos, poucas emoções no mundo se comparam à de se adquirir um tão sonhado livro, tê-lo entre as mãos e folheá-lo como seu possuidor. Jorge de Sena não está alheio a estes sentimentos. E é um poema seu, datado de 1944, quando mal tinha publicado seu primeiro volume de poesia, que expressa com extrema delicadeza um amor imenso à leitura, aos livros e à sua capacidade de transformar vidas. Sob o signo da Ode, este poema toca a sensibilidade de todo amante de livros. 

Ouçamos, pois, a interpretação de Francisco Louçã da “Ode Aos Livros Que Não Posso Comprar”

Sobre “Uma pequenina luz”

 (Breve comentário de Lucas Laurentino, UFRJ)

Viver em tempos sombrios sempre foi um dos maiores desafios para aqueles que lutam e apostam na liberdade de pensamento, na convivência pacífica, na tolerância e superação de preconceitos. No entanto, como diz Hannah Arendt, “Os tempos sombrios, pelo contrário, não só não são novos, como não constituem uma raridade na história.”

Jorge de Sena, enquanto cidadão e escritor politicamente atuante, teve de enfrentar mais de uma vez as ameaças dessas sombras que se mostravam sob as formas da repressão, da censura, do silenciamento. Mas, ainda com Arendt, “que mesmo no tempo mais sombrio temos o direito de esperar alguma iluminação, e que tal iluminação pode bem provir, menos das teorias e conceitos, e mais da luz incerta, bruxuleante e frequentemente fraca que alguns homens e mulheres, nas suas vidas e obras, farão brilhar em quase todas as circunstâncias e irradiarão pelo tempo que lhes foi dado na Terra.” Sena é uma dessas “luzes bruxuleantes” cuja escrita poética nos comove e dá forças para seguir reivindicando um mundo em que a “honra de estar vivo” seja sempre a principal meta.

Tendo em mente tais reflexões, aqui trazemos a leitura de “Uma pequenina luz” (do livro Fidelidade), na voz do poeta:

Sobre “Quem a tem…”

 (Breve comentário de Lucas Laurentino, UFRJ)

Contribuindo para as comemorações do centenário de nascimento de Jorge de Sena, iniciamos hoje no nosso site a divulgação sistemática de poemas senianos lidos ou pelo poeta, ou por estudiosos e admiradores de sua obra.

Como data de estreia, escolhemos propositalmente este 25 de Abril, tão marcante para a História de Portugal e para o próprio Sena – autor que desde sempre foi um defensor radical da liberdade em seus mais diversos aspectos.

E nossa primeira escolha recaiu sobre o emblemático “Quem a tem…”, poema de 1956, escrito três anos antes de o poeta se exilar no Brasil e quase vinte anos antes de ele vir a saber verdadeiramente qual é a cor da liberdade portuguesa: “É verde, verde e vermelha.”