(Breve comentário de Lucas Laurentino, UFRJ)
A poesia lírica costuma ser definida, num sentido mais lato e vago, como aquela em que o sujeito poético expressa os seus sentimentos, emoções e percepções, ficando, assim, ressaltado o seu aspecto “espontâneo”, “sincero”. Desta maneira, parece surgir uma oposição entre a matéria poética que contempla o lado impulsivo, instintivo, emocional do ser humano, e as produções de cunho filosófico e reflexivo, calcadas no racional e até no cálculo preciso.
Cedo percebemos que a poesia de Jorge de Sena não se enquadra nesta frágil divisão e o próprio poeta defende uma lírica meditativa. Seus poemas semanticamente muito elaborados e densos, apoiados numa construção sempre primorosa, bem comprovam a insuficiência em identificar o lirismo à exacerbação do eu. Classificando os poemas de Metamorfoses como “meditações aplicadas”, Sena indica o quanto a especulação e a reflexão acerca do mundo, do homem e das circunstâncias históricas que o cercam podem ser líricas mesmo sem qualquer menção explícita ao eu poético. Sem dúvida, tal classificação ultrapassa esse livro e abarca muito da sua obra em versos.
Exemplar é o poema “Noutros lugares” (21/01/67), de Peregrinatio ad loca infecta (1969), que se constrói a partir de sugestões e percepções do tempo, da mudança, da transitoriedade, elaborado num discurso que ao mesmo tempo afirma e duvida (“Os outros passam, tocam-se, separam-se,/ exactamente como dantes. Mas/ aonde e como? Aonde e como? Quando?”). Por isso, podemos dizer que ele se compõe na chave do ensaio, num modo de escrita que conjuga a tentativa arriscada e o conhecimento seguro, o comentário despretensioso e a sugestão grave.
Essa construção pendular articula uma sucessão de negativas (“Não é que ser possível…”; “Não é que passem as pessoas…”; “Nem é também…”) e de assertivas (“É que os lugares acabam.”; “É que as maneiras, modos, circunstâncias…”), desenvolvendo-se de modo dialético. As negativas são atravessadas por verbos no futuro do pretérito ou no pretérito imperfeito (daria, faríamos, tínhamos, víamos), marcados pela incompletude, ao passo que as afirmativas surgem com verbos no presente, mas um presente que atualiza a ação acabada, numa possível acumulação que indicia justamente perdas repetidas (“os lugares acabam”, “as pessoas somem”, “desertas ficam as praias”, “as ruas rasgam”). Essas alternâncias, constituintes do tom reflexivo do poema, encontram seu ápice nas interrogativas, na inquirição profunda dos vários espaços (“Aonde e como?”; “Em que praias, que ruas, casas, quais leitos”), motivando a intervenção do sujeito poético, explicitamente assumido na expressão angustiada de um “não sei”. E é este “não saber” que reafirma o “apenas sei” da percepção algo melancólica de que “as circunstâncias mudam e os lugares acabam”. Assim, nos derradeiros versos, o processo meditativo conduz não apenas à questão da transitoriedade e deslocamento nos espaços, mas principalmente ao medo, sugerido a partir do pensar que a vida seja “um hábito quebrado que se não reata,/ senão noutros lugares que não conheço.” Particularmente significativas são as últimas palavras do poema, pois o que vemos ao longo dos versos é a afirmação reiterada de uma verdade assumida (“os lugares acabam”), e o não conhecer “outros lugares” em que a vida se possa reatar faz emergir a insuficiência do saber para se alcançar uma ressignificação da vida — o que sugere uma solidão infernal, porque proveniente de “tudo ser igual doutra maneira”, uma espécie de eterno retorno do mesmo.
Ouçamos este poema na voz de Diogo Infante: