Sobre “Missa Solene, op. 123 de Beethoven” (nos 100 anos de nascimento de Jorge de Sena)

(Breve comentário de Lucas Laurentino, UFRJ)

Neste sábado 02.11.2019 comemoramos os cem anos de nascimento de Jorge de Sena, o poeta, o ficcionista, o dramaturgo, o crítico, o ensaísta – uma das vozes mais potentes do século XX. Uma voz que cruzou os oceanos e o tempo para estar hoje, aqui, no meio de nós, não só fazendo ecoar a si mesma como todas aquelas vozes sutis, sussurradas, silenciadas por censuras e repressões.

Assim como ele, perseguido e exilado, incontáveis outros também o foram, num século atravessado por desastres e catástrofes, e todos aqueles que compartilharam do sentimento de roubo, de espoliação, sobretudo do amor que lhes foi tirado, em todas as suas formas e manifestações, convergem numa escrita que é, antes de mais nada, a procura pelo outro, a expectação atenta, a possibilidade de ser testemunha do que foi visto, ouvido, pensado, vivido.

Este poeta, cuja voz é um clamor pela liberdade, pelos direitos humanos, pela dignidade da vida, completa seu primeiro centenário mais atual que nunca, como cumpre a todos os grandes autores, e dentre estes, não é exagero dizer que Sena ocupa uma posição das mais altas. Sua vasta e complexa obra, que reflete um apetite de tudo, um desejo imenso de conhecimento, do outro, dos outros, de si mesmo, do mundo, ainda nos desloca dos lugares-comuns, das conclusões fáceis, do que é aceito sem questionamento, e assim o será pelos centenários que virão, atualizando-se de acordo com o tempo e a sociedade, mas sempre mantendo aquela desconfiança metódica de tudo que não passou pelo filtro da meditação.

Nascido no “dia de finados”, levou para os seus textos esse signo da morte. No posfácio a Metamorfoses nos diz que a série de poemas que compõem o livro é carregada de Morte, sendo o poema que conclui a sequência “visual” não por acaso chamado de “A Morte, o Espaço, a Eternidade”.

Alguns dos seus poemas mais emblemáticos são meditações que ou partem ou atravessam a questão da morte e da mortalidade. No entanto, não os podemos ler como atualização de uma temática ultrarromântica, ou um interesse particular pelo que é mórbido e sombrio. A discussão que Sena desenvolve não é nem a aceitação passiva de um destino inexorável a tudo o que é vivo, nem a negação baseada na fé cega de transcendência para uma vida verdadeira. E é por não pender para nenhum dos polos que essa temática é tão instigante na sua obra. O espetacular verso que abre “A Morte, o Espaço, a Eternidade” – “De morte natural nunca ninguém morreu” – resume lapidarmente a visão seniana sobre o tema e mesmo todo o seu fazer poético.

Nesse âmbito, dentre os grandes textos que nos legou, escolhemos, para esta especial rememoração, o poema “Missa solene, op.123, de Beethoven”, presente em Arte de Música. A escolha foi motivada principalmente pelo fato de ter sido escrito no aniversário do autor, em 2/11/1964 – contava ele então quarenta e cinco anos.

Inspirado em uma das obras máximas do compositor alemão, o poema é dos que melhor expressam o modo como Sena lida com as outras artes: não simplesmente uma tentativa de imitação, não uma glosa, mas um diálogo que põe as duas linguagens em contato, em tal simbiose que não apenas o poema fica carregado de música mas o inverso também acontece. E nesse, em particular, o tom assertivo do primeiro verso logo indica como o diálogo se vai desenvolver: “Não é solene esta música”.

Sendo a primeira palavra do poema o “não”, é imediata a recusa à interpretação habitual que se faz da obra de Beethoven, abrindo espaço para novas perspectivas quanto aos elos entre poema e música.

A seguir, o que parece uma descrição da Missa Solene – “Clamores portentosos”, “violência obsessiva”, “ritmo orquestral continuado”, “tanta paixão gritada”, “tanto contraponto” – desemboca no olhar particular que aí vê tentativas de impedir a interposição “de um fio só/ de melodia, por onde a morte/ penetre interrompendo a vida.”

É assim que se encerra a primeira estrofe. Com a negação do título da obra de Beethoven, nega-se também o aparato circunstancial que ela carrega: o rito católico da Missa Solene, uma missa caracterizada por ser quase inteiramente cantada, inserida no conjunto de missas tridentinas. O catolicismo implícito na execução da peça conduz primeiro a uma interpretação de cunho transcendental, associando a musicalidade a um meio de comunicação com a divindade, como se tudo o que há de humano, de material e de mortal precisasse ser transmutado através da orquestração sonora para que o canto se possa elevar ao ponto mais alto, sendo capaz, então, de propiciar uma aproximação de Deus. Mas isso é recusado por Sena, que, ao se referir à composição, orquestra e coral, como tentativa de impedir que a melodia introduza uma morte, “interrompendo a vida”, indica que nada é mais humano que essa teimosia em negar a morte. E, assim, como a música, embora pareça transcendente, é tocada por mãos mortais, está carregada de humanidade. Nada, portanto, expressa mais o humano que o esforço de se ultrapassar a si mesmo.

Daí passamos à segunda estrofe que, ao contrário da primeira, se inicia por uma afirmação: “É medo, um medo-orgulho, feito/ de solidão e de desconfiança”. O poema nos diz que não podemos nos deixar enganar pelo título da obra; não se trata de uma “missa solene”, por mais que seja sua intenção, pois o que há de mais tocante nessa música é a expressão de um medo profundamente humano. Mas, porque humano, tal medo apresenta um aspecto de orgulho, a marca da teimosia, da insistência. No entanto, medo de quê? Sena não nos responde neste momento e prossegue com mais negativas: “Não/ piedosa tentativa para captar um Deus”, “Não é também, com tanta majestade/ a exigência de que Ele exista”. A música, essa música, define-se primeiro pelo que ela não é. Por isso, todas as referências diretas a ela, nessas duas estrofes, são por negativas. E a negação é justamente a forma discursiva que abre um espaço, cria um hiato, tal como, de outra maneira, a interrogação. A afirmativa preenche lacunas, vem como resposta, como solução. A negativa elimina opções, mas deixa no ar a pergunta. “Não é solene esta música”, então o que é? “É medo, um medo-orgulho”, mas medo de quê? A falta de respostas nas duas estrofes funciona como o hiato que introduz a morte entre os versos. Aquilo que a composição de Beethoven não faz, segundo Sena, é feito de maneira complementar pelo poema.

A resposta possível surge na terceira estrofe, quando esse medo vem à tona: “É um medo comovente de que O não haja/ para remissão dos pecados”. A estrofe se estrutura numa sequência de enjambements que cuidadosamente vão encerrando os versos com qualidades/sinônimos de Deus: “bálsamo”, “consolo”, “dádiva”. Assim, a Missa Solene decorre de uma angústia metafísica e religiosa que coloca a questão do “outro lado”. Seremos capazes de conhecer o que há além do mundo fenomenológico? Como lidar com a possibilidade da não-existência de um Deus redentor? O problema maior, posto nesses primeiros versos da terceira estrofe, não é o da existência de Deus, mas o da sua existência enquanto Deus-para-o-homem, Deus que seja remissão, bálsamo, consolo, dádiva. A música surge, então, como meio capaz de estender essa interrogação até o limite, de se afirmar como ponte que transponha o abismo entre o humano e o divino, e que, na falta deste último, consiga inventar um divino humanizado que coroe as capacidades do homem de se ultrapassar. Tal medo, tão intrinsecamente humano, atravessa toda uma composição orquestral, que contrabalança momentos de explosão sonora aparentando extrapolar os seus próprios limites com momentos de melodia suave a refletir um recolhimento meditativo. Dois estados de espírito que decorrem dessa interrogação metafísica, a reflexão racional e o êxtase religioso – ambos colocados diante do abismo que é a pergunta.

Os versos finais conduzem a relação triádica – música, palavra, divindade – ao seu ponto culminante: “É/ desejo ansioso de que um Agnus Dei/ se interponha (ao contrário da morte) mediador e humano/ entre um nada feito música/ e outro possivelmente Deus.” É significativo que se encerrem três versos com as palavras “humano”, “música” e “Deus”, nessa ordem. A música, que na obra de Beethoven, funcionaria como forma de ultrapassar o destino humano a ponto de tocar o véu do divino, estabelecendo a comunicação possível entre o homem e Deus, é, na visão de Sena, a construtora desse Deus possível. É esse Agnus Dei, epíteto de Jesus Cristo, a personificação da divindade no homem, que se interpõe, “mediador e humano”, entre a música e Deus, o elo, o preenchimento do hiato. Agnus Dei também é uma das passagens da “Missa solene” beethoveniana, indicando que a expressão no poema de Sena é, pelo menos, dupla, o “Cordeiro de Deus” que possa relacionar o humano e o divino por meio da música, mas também a própria música que se interpõe entre o humano e a sua procura por Deus, esse “desejo ansioso” que não chega a certeza alguma senão à afirmação de um Deus possível.

E são os versos finais que selam o encontro entre a música e o poema: “E a esperança desesperada de que seja/ uma grandeza nossa quanto fique,/ de pé, no intervalo entre ambos.” O sintagma “esperança desesperada”, de evocação camoniana, não só resume a dialética desse poema como uma das tensões de toda a obra de Jorge de Sena. A sua relação com o humano e com o mundo é atravessada por um duplo sentimento de afastamento e aproximação, uma esperança profunda e autêntica que por vezes desemboca num lamento desesperado, angustiado.

É a esperança que aparece em outro poema significativo, “Mensagem de Finados”, com seu primeiro verso “Não desesperarei da Humanidade.”, e tem seu contraponto num poema como “Homenagem a Sinistrari”, cujo encantatório e emblemático verso ao avesso grita “Vinde a mim que humanos me não valem!”. É essa tensão constante que ganha sua expressão mais acabada no soneto “Glosa de Guido Cavalcanti”, cujo último verso nos diz “Porque não espero, espero contentado” e nos versos da primeira parte de “Em Creta, com o Minotauro”: “Eu sou eu mesmo a minha pátria. A pátria/ de que escrevo é a língua em que por acaso de gerações/ nasci. E a do que faço e de que vivo é esta/ raiva que tenho de pouca humanidade neste mundo/ quando não acredito em outro, e só outro quereria que/ este mesmo fosse.”

No intervalo entre a música e Deus, entre o humano e Deus, há uma grandeza que não é simplesmente a da arte, como resolução de todas as contradições humanas, mas uma grandeza humilde, desesperadamente esperançosa, a grandeza fruto de uma fidelidade à honra de estar vivo, de uma fidelidade ao mundo, a fidelidade de uma testemunha que não volta o olhar, mesmo diante da maior das catástrofes, que encara a cabeça da Medusa e segue em frente, a grandeza de alguém que se transforma numa luz em meio às trevas, que, junto a outras, forma uma constelação capaz de nos guiar pela noite. É aquela “pequenina luz bruxuleante” que brilha “aqui no meio de nós”. A grandeza de alguém da estatura de Jorge de Sena, que “de pé”, é capaz de nos levar um passo além.

E nos perguntamos, tal como ele fez com Mozart: “Como foi possível que este homem alguma vez morresse?”

Ouçamos então este belíssimo poema na voz do autor acompanhado de um trecho da música de Beethoven:

Sobre “Lamento de um Pai”

(Breve comentário de Lucas Laurentino, UFRJ.)

Um tópico recorrente na produção artística de Jorge de Sena, como sabemos, é a interrogação a respeito da própria arte. Através das múltiplas e variadas formas que a sua poesia experimenta e assume, o autor constantemente questiona, por um lado, a presença das artes, as implicações que elas ganham na sua própria vida e obra, a possibilidade de elas retratarem o mundo de maneira mais nítida, ultrapassando-o, transformando-o; por outro, há a meditação metalinguística a respeito do fazer poético, do lugar do poeta na sociedade, suas responsabilidades políticas e históricas. Não faltam exemplos a ilustrar esse tópico, seja em poemas como “Os trabalhos e os dias”, “Ode à Incompreensão” ou “Em Creta, com o Minotauro”, que abordam a difícil presença do poeta no mundo e a relação que ele estabelece com as diversas realidades com as quais entra em contato; seja em poemas como “A cadeira amarela’, de Van Gogh”, “La Cathédrale engloutie’, de Debussy” ou “Fantasias de Mozart, para tecla”, que, ao tratarem da obra de outros, plástica ou musical, refletem sobre a própria construção artística e a possibilidade de se estabelecer diálogos entre as artes.
No entanto, podemos afirmar que uma das maiores, senão a maior meditação poética de Jorge de Sena é a “Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya”, pois no poema estão implicadas as artes, a História, o mundo, a sociedade e a vida do autor, uma vez que sabemos que foi escrito num momento de importante transição biográfica, quando Sena estava prestes a deixar Portugal e partir para o Brasil. Esse poema-carta é uma das maiores defesas da dignidade humana, do respeito, da valorização da vida que já foram escritas e, sem dúvida, é o poema mais célebre do autor.
No entanto, o referido tópico também aparece em poemas menos “canônicos” ou conhecidos de Jorge de Sena, nos quais a circunstancialidade da vida, com seus desgostos, motiva versos de profunda amargura e desalento. Por vezes, tais poemas expõem a face mais agressiva do autor e vão desde o irritado “Camões dirige-se aos seus contemporâneos” até o (aparentemente) rancoroso “A Portugal”. No primeiro, a falta de reconhecimento, a censura e o silêncio imposto são atacados por uma voz poética que não se quer calada ou submissa, mas que justamente usa o espaço do poema para reivindicar sua autonomia e a potência de seu dizer.
Curioso caso é o “Lamento de um pai de família”, escrito em 15/6/64, mas publicado apenas dezesseis anos mais tarde, em Quarenta anos de servidão (1979), após a morte do poeta.
Este poema, que se inicia com a explosiva interrogação “Como pode um homem carregado de filhos e sem fortuna alguma ser poeta neste tempo de filhos só da puta ou só de putas sem filhos?” parece constituir um contraponto à “Carta a meus filhos” no seu aspecto anti-solene e anti- meditativo, apesar de tratar de um tópico semelhante: a difícil condição de um poeta “pai de família” num tempo marcado por dificuldades, especialmente as de ordem financeira. Deixamos aquela reflexão profunda, de caráter humanista e universal, e vamos para o terreno prosaico, nada
solene, de um homem comum com suas dificuldades mais imediatas.

De fato, se na “Carta a meus filhos” temos a voz poética a se interrogar a respeito da
possibilidade de um futuro utópico, ou da própria necessidade de se imaginar uma utopia, já que o mundo do “aqui e agora” não pode ser o último, no “Lamento” a voz poética se exaspera diante de um sufocamento provindo da realidade imediata, de tal ordem que sequer lhe é possível pensar num futuro. Não existe chance de utopia porque a atividade poética se vê em conflito com o pragmatismo redutor da vida cotidiana. Daí que a resposta à pergunta inicial se estende por quase todo o poema, sempre voltando à expressão “antes ser”, ou só “antes”, enumerando uma série de
atividades/existências mais adequadas a “este tempo” do que a de poeta: “gigolô”, “pederasta profissional”, “denunciante de amigos e inimigos”, “corneador de maridos mansos”, “antes reunir conferências de S. Vicente de Paula”, “antes ir para as guerras”, “militar”, “marafona de circo”, “santo”, “demónio doméstico”, “gato”, “cão”, até chegar ao extremo de ser “piolho”. Como o sujeito poético enfim resume: “Antes tudo isso que assistir a tudo, sofrer de tudo e tudo , e ainda por cima ter de aturar o amor paterno e os sorrisos displicentes dos homens de juízo que deram pílulas às esposas, ou as mandaram à parteira secreta e elas quiseram ir. Antes morrer.”
Porém, quando se imagina que a morte é, de fato, o último recurso para escapar da
problemática vida de “homem carregado de filhos e sem fortuna alguma”, há um drummondiano complemento, que nos diz: “Mas que adianta morrer? Quem nos garante que a morte não existe só para os filhos da puta?”. À semelhança de um “José”, que não morre porque “é duro”, este sujeito encara até a negação da morte, a impossibilidade de escapar a essa vida sufocada, interditada, levando-o a prosseguir com as perguntas: “Como pode um homem sequer estar vivo no meio disto, sem que o matem?”. A resposta, vindo logo em seguida, é como um último golpe, “e o pior é que o matam, sim”.
Para um poeta que, num de seus momentos mais meditativos, nos diz “de morte natural nunca ninguém morreu”, a simples afirmação da morte, ou a sentença “antes morrer”, aparecem como indicativos do grau de amargura e exaustão em que ele se via num dado momento. A interrogação, não respondida, fica para o leitor: “Como pode um homem carregado de filhos e sem fortuna alguma ser poeta neste tempo de filhos só da puta ou só de putas sem filhos?”. Retomando um questionamento atemporal sobre a utilidade da arte, a sua presença no mundo e as implicações decorrentes, Jorge de Sena lhe acrescenta um elemento mais dramático, que é o da possibilidade de um trabalhador, não um herói, não um aventureiro, mas um “homem carregado de filhos e sem fortuna alguma”, condição que o irmana a tantos outros poetas anônimos, expressar a sua arte num mundo “de filhos da puta” – um mundo utilitário, pragmático, corporativo, elitista, hipócrita… e todos os seus correlatos…


Nesse espírito de lamento revoltado, ouçamos o poema na voz de Mário Viegas:

Sobre “Tu és a Terra…”

(Breve comentários de Lucas Laurentino, UFRJ)

A temática amorosa em Jorge de Sena, ainda que seja recorrente, é sempre múltipla e diversa, procurando expressar as várias formas de experienciar o amor e sobre elas refletir. De poemas mais meditativos passamos àqueles mais corpo-a-corpo, marcados pela presença de um nítido tu, destinatário da voz poética. Destes, podemos destacar “Como queiras, Amor, como tu queiras” (de Post-Scriptum), já antes comentado, “Conheço o sal…” (de Conheço o sal… e outros poemas) e, do mesmo livro, o que agora apresentamos: “Tu és a terra…”

Com quatro quartetos em versos brancos e de métrica irregular (rondando o decassílabo), o poema já se inicia com uma declaração aberta: “Tu és a terra em que pouso”. Um tu-lugar definido, a explorar e ampliar. Esta terra não se resume à analogia com o corpo da pessoa amada, mas estende-se à própria relação construída com ele e sem ele. Assim é que os símiles ondulam desde a terra “macia, suave, terna e dura” até a pedra que machuca: “contra que nas arestas me lacero e firo/ mas de musgo coberta refrescando/ as próprias chagas de existir contigo.” Esta terra não é só fragmento, ou mera paisagem, mas uma vivência ampla da natureza, que a pedra, a árvore, as flores e frutos, a água cristalina sintetizam. “não Madre Terra, nem raptada ninfa/ de bosques e montanhas”. A pessoa amada não é mito nem deusa, mas “Terra humana”, carregada de toda a humanidade que atrai o sujeito poético. Assim, as imagens convocadas não servem para pintar uma possível Musa, um ser decorativo cuja função seria inspirar versos, mas conduzem à concretude de uma relação com alguém de carne e osso, relação que humanamente oscila entre o prazer e a dor, a pedra que lacera e o musgo que refresca.

Dessa maneira, o poema é uma declaração de amor maduro, em que não só o desejo erótico está presente, como também a confiança, a convivência, a segurança. A terra em que se pousa é um espaço de certeza, que não descarta a descoberta; é signo do constante retorno a um universo humano ao qual se está emocionalmente ligado.

E se contrapomos este poema de amor ao nitidamente político “Os Paraísos Artificiais” (de Pedra Filosofal), a noção de terra, por contraste, melhor se define.

Neste último, temos um igualmente marcante primeiro verso: “Na minha terra, não há terra, há ruas;”. É esta terra sem terra que não é inefável, porque, mesmo podendo ser dita, não há o que dizer sobre ela, que abriga uma inefável vida censurada. Aqui, a terra natal é caracterizada pela ausência, pelo sentido de distância, de exílio, uma terra de partida, ao passo que, no poema anterior, a terra-pessoa-amada, esse “tu” absoluto, é a terra da chegada e de pouso garantidos, abrigando em segurança e em confiança o eu desterrado. Não é a Madre Terra, como Pátria, que merece ser louvada, mas sim a terra humana, sempre íntegra na sua (ainda que frágil) humanidade.

Ouçamos o poema na voz de seu autor:

Sobre “Exorcismos”

(Breve comentário de Lucas Laurentino, UFRJ)

Já antes destacamos a importância dos sonetos na obra de Jorge de Sena, que os praticou com diferentes temas e com as mais variadas estruturas, sendo a forma fixa mais recorrente na sua produção poética. Seguindo o modelo do soneto inglês ou shakespeariano (três quartetos e um dístico), o poema “Exorcismo” (Coroa da Terra) aborda a temática amorosa a partir de um prisma diverso do de outras produções do autor. O amor é referido ao longo de todo o texto, quase sempre associado a uma oração adjetiva que o qualifica: “amor que desce, amor que nem procura”; “amor em quem não vive o quanto dura”; “amor, a quem não resta a fonte obscura”; “amor que não conhece mais ternura”; “amor vidente que o olhar tritura”. A única exceção é o último verso, “amor – saudade pura sem sentido”, no qual o travessão como que substitui o possível “que é” e estabelece uma relação direta e visual entre amor e saudade.
Conhecendo a marcante presença de Camões na obra de Jorge de Sena, os famosos poemas de amor do poeta quinhentista e alguns ecos do vocabulário camoniano no poema, ao contrário do que seria de esperar, este soneto não se propõe a definir o amor. Nele não temos um “amor é”, mas um “amor que”, uma oração adjetiva restritiva que indica a caracterização de um certo amor. Não é o Amor generalizado, o Eros, ou a sua encarnação, mas um amor específico que vai sendo construído com o passar dos versos.
Tal amor parece estar associado a uma leveza – ideia insinuada em expressões como o “sopro repetido” não procurado, o “peso perdido”, a “ternura” de não querer ver “sangue vertido”, e, por fim, as “penas” do anjo, que apenas “passa” no “desdém da terra”. A ambiência criada por essas imagens é a de uma suspensão dos acontecimentos e este amor parece cristalizado numa imagem, que pouco a pouco é materializada pela voz poética na figura do Anjo.
De fato, apenas dois substantivos encabeçam versos ao longo de todo o poema: amor e Anjo. E ambos ocupam a mesma posição sintática, sugerindo estreita correlação entre eles O anjo é interpelado pela voz poética, através de um tu (“passas”, “em tuas penas”) e logo o anjo-amor culmina na vidência e na saudade – antítese sutil, visto que cada termo aponta para um tempo, futuro e passado. Note-se que a saudade é “sem sentido”: esta palavra, além de sinônimo de “significado”, indica direção. A “saudade pura sem sentido” é uma saudade que vai e vem, de um tempo a outro, atravessando o próprio poema.
Voltando ao primeiro verso, o “amor que desce” parece estar em contradição com esses elementos de leveza, de suspensão, mas podemos conectá-lo ao Anjo que, com as asas carregadas de terra, está em queda. Esse anjo parece evocar o mítico Ícaro que se choca contra as pedras após a cera de suas asas derreter por ele se aproximar muito do sol, e também estar em convergência com o conhecido Anjo da História de Walter Benjamin, paralisado diante da visão do monte de escombros que é a acumulação dos desastres da História, mas impelido para o futuro por uma tempestade que sopra do passado.
Esse anjo-amor pode ser visto como uma espécie de daimon, um ente intermediário com a tarefa de ligar os homens aos deuses. Talvez por aí entendamos o título “Exorcismo”, que significa a expulsão de um espírito demoníaco que possui uma pessoa, um processo de purificação. No poema, entretanto, o sentido da palavra parece também fazer referência à sua etimologia grega de “prestar juramento”. Em vez de expulsar, separar, afastar, o amor aparece como aliança, elo entre o alto e o baixo (o céu e a terra), indicado já pelo movimento de “descida”, as penas cheias de terra do
anjo, entre passado e futuro, juramento de fidelidade a um amor que não pôde ser vivido na sua integralidade porque o “peso foi perdido”, os amantes foram mortos. Este amor que lembra a figura de Janus, o deus de duas faces, olhando para o passado e para o futuro, se mostra como possível elo, união de tempos e espaços e pessoas, próximo do sentido de “fidelidade à honra de estar vivo” que Sena refere em outro poema.
Ouçamos agora a versão musicada deste poema por Luis Cilia:

Sobre “Ó Doce Perspicácia dos Sentidos”

Breve comentário de Lucas Laurentino (UFRJ)

Jorge de Sena é um dos grandes sonetistas em língua portuguesa do século XX. Seu livro As Evidências – poema em 21 sonetos (1955) é exemplar, pois consiste numa sequência em que cada poema apresenta uma variação estrutural da forma fixa. Além desse exercício magistral, os posteriores sonetos a Afrodite Anadiómena (1961) estão entre os poemas mais inventivos e complexos da sua produção.

A prática da escrita de sonetos atravessa toda a obra seniana e bem representativo é o poema, de 1947, “Ó doce perspicácia dos sentidos” (Pedra Filosofal). Além de ser um dos sonetos mais bem acabados do autor, explora temática de grande importância para Sena: o erotismo. Numa primeira aproximação ao texto, logo notamos a sinestesia como elemento marcante de sua estruturação. Os cinco sentidos são convocados para dar corpo ao movimento erótico: o “doce” do paladar; a “visão mais táctil”; o “olfacto” que “ouve”. A combinação das percepções confere um sentido de progressiva descoberta dos corpos “na treva” e imprime movimento às ações, ativas na busca sôfrega, “apressada”, pelo outro. A própria organização fônica do poema é uma verdadeira exploração sensorial, através da articulação da boca que o declama. No primeiro verso temos a recorrência das consoantes sibilantes, dando um tom sussurrado à pronúncia; já nos dois seguintes, são as oclusivas que ressaltam, em contraste direto com as anteriores; no quarto as sibilantes retornam e fecham a estrofe em consonância com o esquema rímico. Tal disposição de sons e articulações performa o jogo erótico de movimentos e pausas bruscas, como se os corpos pouco a pouco se descobrissem.

Esta relação de sibilantes e oclusivas se estende para o restante do poema, e se acentua em versos como “gostsalgado em curvas sem segredos”, no qual a alternância se opera dentro do próprio verso, intensificando o entrelaçamento dos corpos, acelerando o movimento erótico que se desenvolve. Dessa maneira, só pela dimensão fônica já sentimos a materialização dos corpos que interagem eroticamente. Esta experimentação – pode-se dizer – é levada ao extremo nos chamados poemas assêmicos (dos quais os sonetos a Afrodite são os maiores representantes), nos quais as associações suscitadas pela articulação de determinados fones se comunicam diretamente com a percepção, sem passar pela usual mediação do significado das palavras. Tais poemas são eróticos não por congregarem palavras deste campo semântico, mas porque expressam o erotismo de maneira performática. O soneto em pauta, apesar de não chegar a esse extremo, trabalha fortemente com tais associações, e o sentido do movimento sexual é reforçado pela escolha lexical que combina as diferentes áreas da percepção, como que ampliando o alcance dos cinco sentidos… até à temperatura (“perfume túrgido, macio, tépido,/ sequioso de mão gélida e tremente…”). As combinações sinestésicas “visão mais táctil”, “só o olfacto os ouve”, “ásperos rangidos”, “perfume túrgido, macio” exercem grande influência nas sensações sugeridas ao leitor, insinuando o contato íntimo entre corpos que se constituem na relação. São os “corpos repetidos”, “corpos tão fingidos”, sem determinação sexual, movidos apenas pela atração que um exerce sobre o(s) outro(s) e que se mostram inteiramente, oferecendo-se à apreciação de todos os modos possíveis, indicando que o sentido do erotismo é uma entrega do corpo inteiro, a continuidade almejada entre seres descontínuos, de tal maneira que não fica explícito no texto onde um corpo começa e onde acaba, mas que “se ligam, mancha a mancha, lentamente…”.

O poema se encerra repetindo o primeiro verso, num caráter cíclico, reproduzindo linguisticamente esses “corpos repetidos” que se insinuam ao longo das estrofes. Assim, a “perspicácia dos sentidos” é mais que mera percepção que pode ser codificada racionalmente, é uma forma de apreensão, conhecimento, descobrimento de si e do outro. O próprio processo de humanização está implicado neste movimento, o que corresponde à compreensão de Sena do erotismo como uma forma de se expressar e alcançar a dignidade humana, um dos valores mais prezados pelo poeta.

Ouçamos, pois, este poema na voz do seu autor: 

Sobre “quem muito viu…”

(Breve comentário de Lucas Laurentino, UFRJ)

Inscrito na seção “Brasil” de Peregrinatio ad loca infecta (1969), livro dividido em 4 partes mais um epílogo (respectivamente “Portugal (1950-59)”, “Brasil (1959-65)”, “Estados Unidos da América (1965-69)”, “Notas de um regresso à Europa (1968-69)” e o poema “Ganimedes”), o soneto “Quem muito viu…” talvez seja um dos poemas que melhor dê expressão ao título do livro e seu sentido de peregrinação. Talvez até possamos pensar que o sujeito deste poema é o próprio movimento, o próprio peregrinar, numa busca incessante.

Seguindo o trajeto de um sujeito – singular ou coletivo? – apenas designado pelo pronome “quem”, que mais oculta do que revela a sua identidade (ou mais revela que oculta, se pensarmos numa dimensão autobiográfica…), o soneto assinala um movimento contínuo, materializado no discurso pela enumeração e pela sucessão de orações coordenadas (“Quem muito viu, sofreu, passou trabalhos,/ mágoas, humilhações, tristes surpresas;/ e foi traído, e foi roubado, e foi/ privado em extremo da justiça justa”). Esta acumulação de acontecimentos nem sempre correlatos, mas todos ligados ao mesmo sujeito, vai como que arrastando o leitor e tira-lhe o fôlego até poder respirar novamente, no décimo verso, diante do ponto que finaliza o longo período. Percebe então que este se fecha com uma sentença radical: o ser que tanto experimentou, ou que, camoniamente, “errou todo o discurso dos [s]eus anos”, afinal “não sabe nada, nem triunfar lhe cabe/ em sorte como a todos os que vivem.” Tal declaração (que nos recorda “Tabacaria”, de Álvaro de Campos, cuja primeira estrofe enfatiza o não ser nada, o não saber nada) cria enorme surpresa por sugerir a inconsistência ou futilidade daquele somatório de experiências que o sujeito incorporou ao longo dos tempos. Mesmo o ter conhecido “mundos e submundos”, mesmo o ter sido tudo, ainda não foi suficiente e, por isso, em que pese o contraditório, “Apenas não viver lhe dava tudo.”

No entanto, o poema prossegue, semelhante a uma profecia, cujo tom não é menos radical que a afirmação anterior: “Inquieto e franco, altivo e carinhoso, será sempre sem pátria”. Surge aí o termo historicamente ancorado – pátria – que tudo esclarece: esse sujeito indefinido será sempre marcado pelos tempos e espaços do desterro, da condição ex-cêntrica, da condição de exilado, ou seja, do “não viver”. E, ao fim do poema, em outra afirmação voltada para o futuro, lemos, “E a própria morte,/ quando o buscar, há-de encontrá-lo morto.”, a sugerir uma espécie de sujeito (“altivo”), que, graças à sua trajetória de exílio, de não-vida, é capaz de ultrapassar a própria morte. Antecipando-se a ela, recusa o território que ela lhe poderia oferecer – uma espécie de “pátria” da morte – e, portanto, por ser apátrida acima de tudo, consegue derrotá-la.

Ouçamos agora este soneto na voz de Luís Gaspar:

Sobre “Felicidade”

Há 77 anos Jorge de Sena estreava na literatura com seu primeiro livro de poemas, Perseguição. Publicado pelos Cadernos de Poesia, o livro surgiu como fruto da boa vontade de amigos do autor, que se mobilizaram para tornar a edição possível, ainda que em pequena tiragem. Contava então Sena 22 anos e, segundo o próprio, escrevia poemas desde 1936, além de alguma ficção e algum teatro. Por aí já temos um exemplo da precocidade deste autor e de sua espantosa apetência para escrever, que nunca esmoreceu, até o fim da sua vida. O livro, dentre outras características, destaca-se por fazer uso de algumas práticas surrealistas, já em voga no restante da Europa, mas ausentes do meio literário e artístico português. Daí a reivindicação de Sena de ser “surrealista antes que houvesse surrealismo em Portugal”. O procedimento de mesclar abstrações e “palavras concretas” revela-se com bastante clareza num dos seus versos mais conhecidos: “Cria-se da angústia uma cadeira para assistir à noite” (“Noturnos”).

É um processo semelhante o que vemos no poema “Felicidade”, no qual a própria felicidade “sentava-se no peitoril da janela” e apresentava “feições de menino inconsolável”. Neste caso, a felicidade não se apresenta como ideia ou alegoria, mas como um “menino impúbere”, mostrando o seu aspecto infantil, incerto, imaturo, “ainda sem amor para ninguém”. Dessa forma, a ideia ganha em concretude, principalmente por ser apresentada numa imagem cotidiana, comum, de menino. Por sinal, a figura do menino é recorrente em Sena: vide o menino Jesus de “A razão do Pai Natal ter barbas brancas” ou o menino inominado (mas autobiograficamente referido) de “Homenagem ao Papagaio Verde”, queocorrem em sua obra ficcional como indicadores de uma pré-formação, uma abertura ao mundo, uma descoberta da beleza. E é neste mesmo volume Perseguição onde se lê o verso “as crianças nascem com uma coragem que perdem” (“Andante”), que o próprio autor, numa carta a Sophia de Mello Breyner Andresen, afirma ser um dos essenciais da sua poesia. Esta felicidade-menino, então, aparece espantada com o próprio nome. Uma espécie de espanto de as coisas terem um nome, mas também o mistério face ao que seja felicidade. Afinal, como defini-la em termos precisos? É este mistério e esta coragem de vivê-lo poeticamente, tal qual um menino, que constroem a imagem de uma felicidade por criar na poesia, na interrogação do próprio nome.

Ouçamos, agora, este poema na voz do próprio autor:

Sobre “Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya”

(Breve comentário de Lucas Laurentino, UFRJ)

Em 25 de Junho de 1959, pouco mais de um mês antes de sair de Portugal para o Brasil, uma das maiores guinadas em sua vida, Jorge de Sena escreve o que talvez seja o seu poema mais celebrado. Incluído no livro Metamorfoses (1963) ao lado da pintura do “3 de Mayo” de Francisco de Goya, este poema se apresenta como uma carta, o que é significativo, já que Sena era um missivista prodigioso, endereçada aos seus filhos (àquela altura, sete). Se, num primeiro momento, a partir do título, é o dado biográfico que se evidencia no poema, logo esta referência se estende dos filhos a outros previsíveis destinatários: seus leitores e as gerações que herdarão o mundo. Dessa maneira, a “carta” é uma mensagem ao futuro, é o testamento ético, é a grande lição de um sujeito que, diante de um mundo imerso em incertezas, catástrofes e violências, se vê profundamente angustiado e que aposta na liberdade, na paz, na tolerância, como forma de convivência entre os homens. Daí o seu caráter bastante didático, pungente, emocionado.

“Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,/ foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha/ há mais de um século e que por violenta e injusta/ ofendeu o coração de um pintor chamado Goya” – tais versos mostram o artista como um sujeito afetado pelos acontecimentos, ofendido no seu âmago, e é dessa revolta que ele retira a potência de produzir, como forma de memória, para que, tempos depois, este horror seja lembrado e não repetido. No entanto, a angústia da voz poética advém da percepção aguda de que o horror se repetiu e se repete e nada garante que não se repetirá. É a visão infernal de “tudo ser igual doutra maneira”, (como se lê no poema “Noutros Lugares”). É por isso que o seu desejo também aparece em forma de apelo, para que a memória resista, mobilize e toque as gerações futuras da mesma maneira que Goya e o próprio Sena foram tocados. É uma vontade de que suas próprias obras sejam lidas como uma defesa dessa memória, uma defesa da dignidade humana frente a todo tipo de horror que possa acontecer. Para que, mesmo na luta contra monstros, não nos tornemos também monstros.

Mais do que nunca, o passado e a memória são responsabilidade dos que vivem. E saber que só vivemos hoje devido ao sacrifício de muitos deveria ao menos fazer com que prezemos mais a vida e não a vejamos como algo descartável simplesmente porque a morte é inevitável. Assim, a carta pluraliza seus destinatários e implica nós, leitores, nessa dinâmica. Os que a leram agora precisam responder ao apelo e assumir a responsabilidade de honrar a dignidade humana, para que “tanta dor, tanta angústia” não tenham sido em vão.

Ouçamos este poema na voz de Eunice Muñoz, lido na cerimônia que marcou a trasladação dos restos mortais de Jorge de Sena para Portugal.

SOBRE “EPÍGRAFE PARA A ARTE DE FURTAR”

(Breve comentário de Lucas Laurentino, UFRJ)

Arte de Furtar é um livro português publicado em 1652, de autoria atribuída ao Padre António Vieira, “Zelozo da Pátria”. Ainda pairam dúvidas sobre a data, o autor, o lugar de impressão e a editora. Certo é que a fórmula “Arte de” era comum na época (Arte de NavegarArte de OrarArte de Reinar) e serviu para construir um irônico texto político que denunciava práticas de corrupção no período da Restauração, desde o reinado de D. João IV. Assim, pelo “ensinar a furtar”, este livro é uma aguda crítica às instituições, sinalizando o quanto a corrupção estava entranhada na sociedade, não escapando categoria alguma, da burguesia ao clero.

Jorge de Sena, em 1952, propõe-nos uma epígrafe à obra de 1652. Como sabemos, a epígrafe é em geral uma citação, anteposta à obra para indiciar de imediato um jogo intertextual explícito. Nesta epígrafe seniana, de 300 anos após a publicação da Arte de Furtar, o que lemos é algo como uma situação anterior que motivaria o próprio livro, situação esta de um sujeito que se encontra espoliado de praticamente tudo, dos elementos mais essenciais, que precedem as formas de roubar factuais enumeradas ao longo daqueles capítulos.

Em versos curtos e incisivos, gerando leitura agressiva que se assemelha a um grito de protesto, o poema se estrutura em quatro estrofes, cada uma enfocando um tipo de roubo: o metafísico (Deus e Diabo), o político-humanístico (Pátria e Humanidade), o afetivo (“quem eu deseje” e “de mim mesmo”) e, por fim, a própria linguagem (voz e silêncio). De tal maneira este roubo se avoluma que chega ao paradoxo, ao oximoro, quando o sujeito protesta por ter sua voz roubada quando fala e o silêncio quando cala, não lhe restando nenhuma possibilidade de saída além da própria percepção do roubo. Tal percepção se verbaliza justamente pelo último verso, “– aqui del-rei!”, um brado a pedir socorro que, por estar ao fim do poema, não é capaz de ecoar, sufocando-se na própria indignação.

Se Fernando Pessoa/Álvaro de Campos, no “Poema em linha recta”, nos legou o sujeito que se sente aviltado e vil, agredido e acovardado, Sena nos traz um sentimento parecido,a emergir da palavra de um sujeito “emparedado” (como diria Cesário Verde), que expressa em dezessete versos de quatro sílabas a injustiça pela qual passa, muito provavelmente praticada por “profissionais” do furto, muito possivelmente aqueles que deveriam zelar pela honestidade e transparência mas que põem seus interesses em primeiro lugar e pouco se importam com o que acontece às vítimas.

O refrão, “quem cantarei?”, parece denunciar um roubo ainda maior, o da criatividade, o tudo que própria palavra arte contém.O que cantar se tudo foi levado, de Deus à identidade? Da mesma forma, a quem apelar se quem rouba é a instituição que deveria zelar pelo justo?Assim, ouçamos este grito de protesto na voz de Zeca Afonso, que agudamente captou o sentimento de revolta que salta do poema.

Sobre “Noutros lugares”

(Breve comentário de Lucas Laurentino, UFRJ)

A poesia lírica costuma ser definida, num sentido mais lato e vago, como aquela em que o sujeito poético expressa os seus sentimentos, emoções e percepções, ficando, assim, ressaltado o seu aspecto “espontâneo”, “sincero”. Desta maneira, parece surgir uma oposição entre a matéria poética que contempla o lado impulsivo, instintivo, emocional do ser humano, e as produções de cunho filosófico e reflexivo, calcadas no racional e até no cálculo preciso.

Cedo percebemos que a poesia de Jorge de Sena não se enquadra nesta frágil divisão e o próprio poeta defende uma lírica meditativa. Seus poemas semanticamente muito elaborados e densos, apoiados numa construção sempre primorosa, bem comprovam a insuficiência em identificar o lirismo à exacerbação do eu. Classificando os poemas de Metamorfoses como “meditações aplicadas”, Sena indica o quanto a especulação e a reflexão acerca do mundo, do homem e das circunstâncias históricas que o cercam podem ser líricas mesmo sem qualquer menção explícita ao eu poético. Sem dúvida, tal classificação ultrapassa esse livro e abarca muito da sua obra em versos. 

Exemplar é o poema “Noutros lugares” (21/01/67), de Peregrinatio ad loca infecta (1969), que se constrói a partir de sugestões e percepções do tempo, da mudança, da transitoriedade, elaborado num discurso que ao mesmo tempo afirma e duvida (“Os outros passam, tocam-se, separam-se,/ exactamente como dantes. Mas/ aonde e como? Aonde e como? Quando?”). Por isso, podemos dizer que ele se compõe na chave do ensaio, num modo de escrita que conjuga a tentativa arriscada e o conhecimento seguro, o comentário despretensioso e a sugestão grave.

Essa construção pendular articula uma sucessão de negativas (“Não é que ser possível…”; “Não é que passem as pessoas…”; “Nem é também…”) e de assertivas (“É que os lugares acabam.”; “É que as maneiras, modos, circunstâncias…”), desenvolvendo-se de modo dialético. As negativas são atravessadas por verbos no futuro do pretérito ou no pretérito imperfeito (daria, faríamos, tínhamos, víamos), marcados pela incompletude, ao passo que as afirmativas surgem com verbos no presente, mas um presente que atualiza a ação acabada, numa possível acumulação que indicia justamente perdas repetidas (“os lugares acabam”, “as pessoas somem”, “desertas ficam as praias”, “as ruas rasgam”). Essas alternâncias, constituintes do tom reflexivo do poema, encontram seu ápice nas interrogativas, na inquirição profunda dos vários espaços (“Aonde e como?”; “Em que praias, que ruas, casas, quais leitos”), motivando a intervenção do sujeito poético, explicitamente assumido na expressão angustiada de um “não sei”. E é este “não saber” que reafirma o “apenas sei” da percepção algo melancólica de que “as circunstâncias mudam e os lugares acabam”. Assim, nos derradeiros versos, o processo meditativo conduz não apenas à questão da transitoriedade e deslocamento nos espaços, mas principalmente ao medo, sugerido a partir do pensar que a vida seja “um hábito quebrado que se não reata,/ senão noutros lugares que não conheço.” Particularmente significativas são as últimas palavras do poema, pois o que vemos ao longo dos versos é a afirmação reiterada de uma verdade assumida (“os lugares acabam”), e o não conhecer “outros lugares” em que a vida se possa reatar faz emergir a insuficiência do saber para se alcançar uma ressignificação da vida — o que sugere uma solidão infernal, porque proveniente de “tudo ser igual doutra maneira”, uma espécie de eterno retorno do mesmo.     

Ouçamos este poema na voz de Diogo Infante: