(Breve comentário de Lucas Laurentino, UFRJ.)
Um tópico recorrente na produção artística de Jorge de Sena, como sabemos, é a interrogação a respeito da própria arte. Através das múltiplas e variadas formas que a sua poesia experimenta e assume, o autor constantemente questiona, por um lado, a presença das artes, as implicações que elas ganham na sua própria vida e obra, a possibilidade de elas retratarem o mundo de maneira mais nítida, ultrapassando-o, transformando-o; por outro, há a meditação metalinguística a respeito do fazer poético, do lugar do poeta na sociedade, suas responsabilidades políticas e históricas. Não faltam exemplos a ilustrar esse tópico, seja em poemas como “Os trabalhos e os dias”, “Ode à Incompreensão” ou “Em Creta, com o Minotauro”, que abordam a difícil presença do poeta no mundo e a relação que ele estabelece com as diversas realidades com as quais entra em contato; seja em poemas como “A cadeira amarela’, de Van Gogh”, “La Cathédrale engloutie’, de Debussy” ou “Fantasias de Mozart, para tecla”, que, ao tratarem da obra de outros, plástica ou musical, refletem sobre a própria construção artística e a possibilidade de se estabelecer diálogos entre as artes.
No entanto, podemos afirmar que uma das maiores, senão a maior meditação poética de Jorge de Sena é a “Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya”, pois no poema estão implicadas as artes, a História, o mundo, a sociedade e a vida do autor, uma vez que sabemos que foi escrito num momento de importante transição biográfica, quando Sena estava prestes a deixar Portugal e partir para o Brasil. Esse poema-carta é uma das maiores defesas da dignidade humana, do respeito, da valorização da vida que já foram escritas e, sem dúvida, é o poema mais célebre do autor.
No entanto, o referido tópico também aparece em poemas menos “canônicos” ou conhecidos de Jorge de Sena, nos quais a circunstancialidade da vida, com seus desgostos, motiva versos de profunda amargura e desalento. Por vezes, tais poemas expõem a face mais agressiva do autor e vão desde o irritado “Camões dirige-se aos seus contemporâneos” até o (aparentemente) rancoroso “A Portugal”. No primeiro, a falta de reconhecimento, a censura e o silêncio imposto são atacados por uma voz poética que não se quer calada ou submissa, mas que justamente usa o espaço do poema para reivindicar sua autonomia e a potência de seu dizer.
Curioso caso é o “Lamento de um pai de família”, escrito em 15/6/64, mas publicado apenas dezesseis anos mais tarde, em Quarenta anos de servidão (1979), após a morte do poeta.
Este poema, que se inicia com a explosiva interrogação “Como pode um homem carregado de filhos e sem fortuna alguma ser poeta neste tempo de filhos só da puta ou só de putas sem filhos?” parece constituir um contraponto à “Carta a meus filhos” no seu aspecto anti-solene e anti- meditativo, apesar de tratar de um tópico semelhante: a difícil condição de um poeta “pai de família” num tempo marcado por dificuldades, especialmente as de ordem financeira. Deixamos aquela reflexão profunda, de caráter humanista e universal, e vamos para o terreno prosaico, nada
solene, de um homem comum com suas dificuldades mais imediatas.
De fato, se na “Carta a meus filhos” temos a voz poética a se interrogar a respeito da
possibilidade de um futuro utópico, ou da própria necessidade de se imaginar uma utopia, já que o mundo do “aqui e agora” não pode ser o último, no “Lamento” a voz poética se exaspera diante de um sufocamento provindo da realidade imediata, de tal ordem que sequer lhe é possível pensar num futuro. Não existe chance de utopia porque a atividade poética se vê em conflito com o pragmatismo redutor da vida cotidiana. Daí que a resposta à pergunta inicial se estende por quase todo o poema, sempre voltando à expressão “antes ser”, ou só “antes”, enumerando uma série de
atividades/existências mais adequadas a “este tempo” do que a de poeta: “gigolô”, “pederasta profissional”, “denunciante de amigos e inimigos”, “corneador de maridos mansos”, “antes reunir conferências de S. Vicente de Paula”, “antes ir para as guerras”, “militar”, “marafona de circo”, “santo”, “demónio doméstico”, “gato”, “cão”, até chegar ao extremo de ser “piolho”. Como o sujeito poético enfim resume: “Antes tudo isso que assistir a tudo, sofrer de tudo e tudo , e ainda por cima ter de aturar o amor paterno e os sorrisos displicentes dos homens de juízo que deram pílulas às esposas, ou as mandaram à parteira secreta e elas quiseram ir. Antes morrer.”
Porém, quando se imagina que a morte é, de fato, o último recurso para escapar da
problemática vida de “homem carregado de filhos e sem fortuna alguma”, há um drummondiano complemento, que nos diz: “Mas que adianta morrer? Quem nos garante que a morte não existe só para os filhos da puta?”. À semelhança de um “José”, que não morre porque “é duro”, este sujeito encara até a negação da morte, a impossibilidade de escapar a essa vida sufocada, interditada, levando-o a prosseguir com as perguntas: “Como pode um homem sequer estar vivo no meio disto, sem que o matem?”. A resposta, vindo logo em seguida, é como um último golpe, “e o pior é que o matam, sim”.
Para um poeta que, num de seus momentos mais meditativos, nos diz “de morte natural nunca ninguém morreu”, a simples afirmação da morte, ou a sentença “antes morrer”, aparecem como indicativos do grau de amargura e exaustão em que ele se via num dado momento. A interrogação, não respondida, fica para o leitor: “Como pode um homem carregado de filhos e sem fortuna alguma ser poeta neste tempo de filhos só da puta ou só de putas sem filhos?”. Retomando um questionamento atemporal sobre a utilidade da arte, a sua presença no mundo e as implicações decorrentes, Jorge de Sena lhe acrescenta um elemento mais dramático, que é o da possibilidade de um trabalhador, não um herói, não um aventureiro, mas um “homem carregado de filhos e sem fortuna alguma”, condição que o irmana a tantos outros poetas anônimos, expressar a sua arte num mundo “de filhos da puta” – um mundo utilitário, pragmático, corporativo, elitista, hipócrita… e todos os seus correlatos…
Nesse espírito de lamento revoltado, ouçamos o poema na voz de Mário Viegas: