(Breve comentário de Lucas Laurentino, UFRJ)
Neste sábado 02.11.2019 comemoramos os cem anos de nascimento de Jorge de Sena, o poeta, o ficcionista, o dramaturgo, o crítico, o ensaísta – uma das vozes mais potentes do século XX. Uma voz que cruzou os oceanos e o tempo para estar hoje, aqui, no meio de nós, não só fazendo ecoar a si mesma como todas aquelas vozes sutis, sussurradas, silenciadas por censuras e repressões.
Assim como ele, perseguido e exilado, incontáveis outros também o foram, num século atravessado por desastres e catástrofes, e todos aqueles que compartilharam do sentimento de roubo, de espoliação, sobretudo do amor que lhes foi tirado, em todas as suas formas e manifestações, convergem numa escrita que é, antes de mais nada, a procura pelo outro, a expectação atenta, a possibilidade de ser testemunha do que foi visto, ouvido, pensado, vivido.
Este poeta, cuja voz é um clamor pela liberdade, pelos direitos humanos, pela dignidade da vida, completa seu primeiro centenário mais atual que nunca, como cumpre a todos os grandes autores, e dentre estes, não é exagero dizer que Sena ocupa uma posição das mais altas. Sua vasta e complexa obra, que reflete um apetite de tudo, um desejo imenso de conhecimento, do outro, dos outros, de si mesmo, do mundo, ainda nos desloca dos lugares-comuns, das conclusões fáceis, do que é aceito sem questionamento, e assim o será pelos centenários que virão, atualizando-se de acordo com o tempo e a sociedade, mas sempre mantendo aquela desconfiança metódica de tudo que não passou pelo filtro da meditação.
Nascido no “dia de finados”, levou para os seus textos esse signo da morte. No posfácio a Metamorfoses nos diz que a série de poemas que compõem o livro é carregada de Morte, sendo o poema que conclui a sequência “visual” não por acaso chamado de “A Morte, o Espaço, a Eternidade”.
Alguns dos seus poemas mais emblemáticos são meditações que ou partem ou atravessam a questão da morte e da mortalidade. No entanto, não os podemos ler como atualização de uma temática ultrarromântica, ou um interesse particular pelo que é mórbido e sombrio. A discussão que Sena desenvolve não é nem a aceitação passiva de um destino inexorável a tudo o que é vivo, nem a negação baseada na fé cega de transcendência para uma vida verdadeira. E é por não pender para nenhum dos polos que essa temática é tão instigante na sua obra. O espetacular verso que abre “A Morte, o Espaço, a Eternidade” – “De morte natural nunca ninguém morreu” – resume lapidarmente a visão seniana sobre o tema e mesmo todo o seu fazer poético.
Nesse âmbito, dentre os grandes textos que nos legou, escolhemos, para esta especial rememoração, o poema “Missa solene, op.123, de Beethoven”, presente em Arte de Música. A escolha foi motivada principalmente pelo fato de ter sido escrito no aniversário do autor, em 2/11/1964 – contava ele então quarenta e cinco anos.
Inspirado em uma das obras máximas do compositor alemão, o poema é dos que melhor expressam o modo como Sena lida com as outras artes: não simplesmente uma tentativa de imitação, não uma glosa, mas um diálogo que põe as duas linguagens em contato, em tal simbiose que não apenas o poema fica carregado de música mas o inverso também acontece. E nesse, em particular, o tom assertivo do primeiro verso logo indica como o diálogo se vai desenvolver: “Não é solene esta música”.
Sendo a primeira palavra do poema o “não”, é imediata a recusa à interpretação habitual que se faz da obra de Beethoven, abrindo espaço para novas perspectivas quanto aos elos entre poema e música.
A seguir, o que parece uma descrição da Missa Solene – “Clamores portentosos”, “violência obsessiva”, “ritmo orquestral continuado”, “tanta paixão gritada”, “tanto contraponto” – desemboca no olhar particular que aí vê tentativas de impedir a interposição “de um fio só/ de melodia, por onde a morte/ penetre interrompendo a vida.”
É assim que se encerra a primeira estrofe. Com a negação do título da obra de Beethoven, nega-se também o aparato circunstancial que ela carrega: o rito católico da Missa Solene, uma missa caracterizada por ser quase inteiramente cantada, inserida no conjunto de missas tridentinas. O catolicismo implícito na execução da peça conduz primeiro a uma interpretação de cunho transcendental, associando a musicalidade a um meio de comunicação com a divindade, como se tudo o que há de humano, de material e de mortal precisasse ser transmutado através da orquestração sonora para que o canto se possa elevar ao ponto mais alto, sendo capaz, então, de propiciar uma aproximação de Deus. Mas isso é recusado por Sena, que, ao se referir à composição, orquestra e coral, como tentativa de impedir que a melodia introduza uma morte, “interrompendo a vida”, indica que nada é mais humano que essa teimosia em negar a morte. E, assim, como a música, embora pareça transcendente, é tocada por mãos mortais, está carregada de humanidade. Nada, portanto, expressa mais o humano que o esforço de se ultrapassar a si mesmo.
Daí passamos à segunda estrofe que, ao contrário da primeira, se inicia por uma afirmação: “É medo, um medo-orgulho, feito/ de solidão e de desconfiança”. O poema nos diz que não podemos nos deixar enganar pelo título da obra; não se trata de uma “missa solene”, por mais que seja sua intenção, pois o que há de mais tocante nessa música é a expressão de um medo profundamente humano. Mas, porque humano, tal medo apresenta um aspecto de orgulho, a marca da teimosia, da insistência. No entanto, medo de quê? Sena não nos responde neste momento e prossegue com mais negativas: “Não/ piedosa tentativa para captar um Deus”, “Não é também, com tanta majestade/ a exigência de que Ele exista”. A música, essa música, define-se primeiro pelo que ela não é. Por isso, todas as referências diretas a ela, nessas duas estrofes, são por negativas. E a negação é justamente a forma discursiva que abre um espaço, cria um hiato, tal como, de outra maneira, a interrogação. A afirmativa preenche lacunas, vem como resposta, como solução. A negativa elimina opções, mas deixa no ar a pergunta. “Não é solene esta música”, então o que é? “É medo, um medo-orgulho”, mas medo de quê? A falta de respostas nas duas estrofes funciona como o hiato que introduz a morte entre os versos. Aquilo que a composição de Beethoven não faz, segundo Sena, é feito de maneira complementar pelo poema.
A resposta possível surge na terceira estrofe, quando esse medo vem à tona: “É um medo comovente de que O não haja/ para remissão dos pecados”. A estrofe se estrutura numa sequência de enjambements que cuidadosamente vão encerrando os versos com qualidades/sinônimos de Deus: “bálsamo”, “consolo”, “dádiva”. Assim, a Missa Solene decorre de uma angústia metafísica e religiosa que coloca a questão do “outro lado”. Seremos capazes de conhecer o que há além do mundo fenomenológico? Como lidar com a possibilidade da não-existência de um Deus redentor? O problema maior, posto nesses primeiros versos da terceira estrofe, não é o da existência de Deus, mas o da sua existência enquanto Deus-para-o-homem, Deus que seja remissão, bálsamo, consolo, dádiva. A música surge, então, como meio capaz de estender essa interrogação até o limite, de se afirmar como ponte que transponha o abismo entre o humano e o divino, e que, na falta deste último, consiga inventar um divino humanizado que coroe as capacidades do homem de se ultrapassar. Tal medo, tão intrinsecamente humano, atravessa toda uma composição orquestral, que contrabalança momentos de explosão sonora aparentando extrapolar os seus próprios limites com momentos de melodia suave a refletir um recolhimento meditativo. Dois estados de espírito que decorrem dessa interrogação metafísica, a reflexão racional e o êxtase religioso – ambos colocados diante do abismo que é a pergunta.
Os versos finais conduzem a relação triádica – música, palavra, divindade – ao seu ponto culminante: “É/ desejo ansioso de que um Agnus Dei/ se interponha (ao contrário da morte) mediador e humano/ entre um nada feito música/ e outro possivelmente Deus.” É significativo que se encerrem três versos com as palavras “humano”, “música” e “Deus”, nessa ordem. A música, que na obra de Beethoven, funcionaria como forma de ultrapassar o destino humano a ponto de tocar o véu do divino, estabelecendo a comunicação possível entre o homem e Deus, é, na visão de Sena, a construtora desse Deus possível. É esse Agnus Dei, epíteto de Jesus Cristo, a personificação da divindade no homem, que se interpõe, “mediador e humano”, entre a música e Deus, o elo, o preenchimento do hiato. Agnus Dei também é uma das passagens da “Missa solene” beethoveniana, indicando que a expressão no poema de Sena é, pelo menos, dupla, o “Cordeiro de Deus” que possa relacionar o humano e o divino por meio da música, mas também a própria música que se interpõe entre o humano e a sua procura por Deus, esse “desejo ansioso” que não chega a certeza alguma senão à afirmação de um Deus possível.
E são os versos finais que selam o encontro entre a música e o poema: “E a esperança desesperada de que seja/ uma grandeza nossa quanto fique,/ de pé, no intervalo entre ambos.” O sintagma “esperança desesperada”, de evocação camoniana, não só resume a dialética desse poema como uma das tensões de toda a obra de Jorge de Sena. A sua relação com o humano e com o mundo é atravessada por um duplo sentimento de afastamento e aproximação, uma esperança profunda e autêntica que por vezes desemboca num lamento desesperado, angustiado.
É a esperança que aparece em outro poema significativo, “Mensagem de Finados”, com seu primeiro verso “Não desesperarei da Humanidade.”, e tem seu contraponto num poema como “Homenagem a Sinistrari”, cujo encantatório e emblemático verso ao avesso grita “Vinde a mim que humanos me não valem!”. É essa tensão constante que ganha sua expressão mais acabada no soneto “Glosa de Guido Cavalcanti”, cujo último verso nos diz “Porque não espero, espero contentado” e nos versos da primeira parte de “Em Creta, com o Minotauro”: “Eu sou eu mesmo a minha pátria. A pátria/ de que escrevo é a língua em que por acaso de gerações/ nasci. E a do que faço e de que vivo é esta/ raiva que tenho de pouca humanidade neste mundo/ quando não acredito em outro, e só outro quereria que/ este mesmo fosse.”
No intervalo entre a música e Deus, entre o humano e Deus, há uma grandeza que não é simplesmente a da arte, como resolução de todas as contradições humanas, mas uma grandeza humilde, desesperadamente esperançosa, a grandeza fruto de uma fidelidade à honra de estar vivo, de uma fidelidade ao mundo, a fidelidade de uma testemunha que não volta o olhar, mesmo diante da maior das catástrofes, que encara a cabeça da Medusa e segue em frente, a grandeza de alguém que se transforma numa luz em meio às trevas, que, junto a outras, forma uma constelação capaz de nos guiar pela noite. É aquela “pequenina luz bruxuleante” que brilha “aqui no meio de nós”. A grandeza de alguém da estatura de Jorge de Sena, que “de pé”, é capaz de nos levar um passo além.
E nos perguntamos, tal como ele fez com Mozart: “Como foi possível que este homem alguma vez morresse?”
Ouçamos então este belíssimo poema na voz do autor acompanhado de um trecho da música de Beethoven: