(Breve comentário de Lucas Laurentino, UFRJ)
A Arte de Furtar é um livro português publicado em 1652, de autoria atribuída ao Padre António Vieira, “Zelozo da Pátria”. Ainda pairam dúvidas sobre a data, o autor, o lugar de impressão e a editora. Certo é que a fórmula “Arte de” era comum na época (Arte de Navegar, Arte de Orar, Arte de Reinar) e serviu para construir um irônico texto político que denunciava práticas de corrupção no período da Restauração, desde o reinado de D. João IV. Assim, pelo “ensinar a furtar”, este livro é uma aguda crítica às instituições, sinalizando o quanto a corrupção estava entranhada na sociedade, não escapando categoria alguma, da burguesia ao clero.
Jorge de Sena, em 1952, propõe-nos uma epígrafe à obra de 1652. Como sabemos, a epígrafe é em geral uma citação, anteposta à obra para indiciar de imediato um jogo intertextual explícito. Nesta epígrafe seniana, de 300 anos após a publicação da Arte de Furtar, o que lemos é algo como uma situação anterior que motivaria o próprio livro, situação esta de um sujeito que se encontra espoliado de praticamente tudo, dos elementos mais essenciais, que precedem as formas de roubar factuais enumeradas ao longo daqueles capítulos.
Em versos curtos e incisivos, gerando leitura agressiva que se assemelha a um grito de protesto, o poema se estrutura em quatro estrofes, cada uma enfocando um tipo de roubo: o metafísico (Deus e Diabo), o político-humanístico (Pátria e Humanidade), o afetivo (“quem eu deseje” e “de mim mesmo”) e, por fim, a própria linguagem (voz e silêncio). De tal maneira este roubo se avoluma que chega ao paradoxo, ao oximoro, quando o sujeito protesta por ter sua voz roubada quando fala e o silêncio quando cala, não lhe restando nenhuma possibilidade de saída além da própria percepção do roubo. Tal percepção se verbaliza justamente pelo último verso, “– aqui del-rei!”, um brado a pedir socorro que, por estar ao fim do poema, não é capaz de ecoar, sufocando-se na própria indignação.
Se Fernando Pessoa/Álvaro de Campos, no “Poema em linha recta”, nos legou o sujeito que se sente aviltado e vil, agredido e acovardado, Sena nos traz um sentimento parecido,a emergir da palavra de um sujeito “emparedado” (como diria Cesário Verde), que expressa em dezessete versos de quatro sílabas a injustiça pela qual passa, muito provavelmente praticada por “profissionais” do furto, muito possivelmente aqueles que deveriam zelar pela honestidade e transparência mas que põem seus interesses em primeiro lugar e pouco se importam com o que acontece às vítimas.
O refrão, “quem cantarei?”, parece denunciar um roubo ainda maior, o da criatividade, o tudo que própria palavra arte contém.O que cantar se tudo foi levado, de Deus à identidade? Da mesma forma, a quem apelar se quem rouba é a instituição que deveria zelar pelo justo?Assim, ouçamos este grito de protesto na voz de Zeca Afonso, que agudamente captou o sentimento de revolta que salta do poema.