Sobre “Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya”

(Breve comentário de Lucas Laurentino, UFRJ)

Em 25 de Junho de 1959, pouco mais de um mês antes de sair de Portugal para o Brasil, uma das maiores guinadas em sua vida, Jorge de Sena escreve o que talvez seja o seu poema mais celebrado. Incluído no livro Metamorfoses (1963) ao lado da pintura do “3 de Mayo” de Francisco de Goya, este poema se apresenta como uma carta, o que é significativo, já que Sena era um missivista prodigioso, endereçada aos seus filhos (àquela altura, sete). Se, num primeiro momento, a partir do título, é o dado biográfico que se evidencia no poema, logo esta referência se estende dos filhos a outros previsíveis destinatários: seus leitores e as gerações que herdarão o mundo. Dessa maneira, a “carta” é uma mensagem ao futuro, é o testamento ético, é a grande lição de um sujeito que, diante de um mundo imerso em incertezas, catástrofes e violências, se vê profundamente angustiado e que aposta na liberdade, na paz, na tolerância, como forma de convivência entre os homens. Daí o seu caráter bastante didático, pungente, emocionado.

“Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,/ foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha/ há mais de um século e que por violenta e injusta/ ofendeu o coração de um pintor chamado Goya” – tais versos mostram o artista como um sujeito afetado pelos acontecimentos, ofendido no seu âmago, e é dessa revolta que ele retira a potência de produzir, como forma de memória, para que, tempos depois, este horror seja lembrado e não repetido. No entanto, a angústia da voz poética advém da percepção aguda de que o horror se repetiu e se repete e nada garante que não se repetirá. É a visão infernal de “tudo ser igual doutra maneira”, (como se lê no poema “Noutros Lugares”). É por isso que o seu desejo também aparece em forma de apelo, para que a memória resista, mobilize e toque as gerações futuras da mesma maneira que Goya e o próprio Sena foram tocados. É uma vontade de que suas próprias obras sejam lidas como uma defesa dessa memória, uma defesa da dignidade humana frente a todo tipo de horror que possa acontecer. Para que, mesmo na luta contra monstros, não nos tornemos também monstros.

Mais do que nunca, o passado e a memória são responsabilidade dos que vivem. E saber que só vivemos hoje devido ao sacrifício de muitos deveria ao menos fazer com que prezemos mais a vida e não a vejamos como algo descartável simplesmente porque a morte é inevitável. Assim, a carta pluraliza seus destinatários e implica nós, leitores, nessa dinâmica. Os que a leram agora precisam responder ao apelo e assumir a responsabilidade de honrar a dignidade humana, para que “tanta dor, tanta angústia” não tenham sido em vão.

Ouçamos este poema na voz de Eunice Muñoz, lido na cerimônia que marcou a trasladação dos restos mortais de Jorge de Sena para Portugal.