Sobre “Exorcismos”

(Breve comentário de Lucas Laurentino, UFRJ)

Já antes destacamos a importância dos sonetos na obra de Jorge de Sena, que os praticou com diferentes temas e com as mais variadas estruturas, sendo a forma fixa mais recorrente na sua produção poética. Seguindo o modelo do soneto inglês ou shakespeariano (três quartetos e um dístico), o poema “Exorcismo” (Coroa da Terra) aborda a temática amorosa a partir de um prisma diverso do de outras produções do autor. O amor é referido ao longo de todo o texto, quase sempre associado a uma oração adjetiva que o qualifica: “amor que desce, amor que nem procura”; “amor em quem não vive o quanto dura”; “amor, a quem não resta a fonte obscura”; “amor que não conhece mais ternura”; “amor vidente que o olhar tritura”. A única exceção é o último verso, “amor – saudade pura sem sentido”, no qual o travessão como que substitui o possível “que é” e estabelece uma relação direta e visual entre amor e saudade.
Conhecendo a marcante presença de Camões na obra de Jorge de Sena, os famosos poemas de amor do poeta quinhentista e alguns ecos do vocabulário camoniano no poema, ao contrário do que seria de esperar, este soneto não se propõe a definir o amor. Nele não temos um “amor é”, mas um “amor que”, uma oração adjetiva restritiva que indica a caracterização de um certo amor. Não é o Amor generalizado, o Eros, ou a sua encarnação, mas um amor específico que vai sendo construído com o passar dos versos.
Tal amor parece estar associado a uma leveza – ideia insinuada em expressões como o “sopro repetido” não procurado, o “peso perdido”, a “ternura” de não querer ver “sangue vertido”, e, por fim, as “penas” do anjo, que apenas “passa” no “desdém da terra”. A ambiência criada por essas imagens é a de uma suspensão dos acontecimentos e este amor parece cristalizado numa imagem, que pouco a pouco é materializada pela voz poética na figura do Anjo.
De fato, apenas dois substantivos encabeçam versos ao longo de todo o poema: amor e Anjo. E ambos ocupam a mesma posição sintática, sugerindo estreita correlação entre eles O anjo é interpelado pela voz poética, através de um tu (“passas”, “em tuas penas”) e logo o anjo-amor culmina na vidência e na saudade – antítese sutil, visto que cada termo aponta para um tempo, futuro e passado. Note-se que a saudade é “sem sentido”: esta palavra, além de sinônimo de “significado”, indica direção. A “saudade pura sem sentido” é uma saudade que vai e vem, de um tempo a outro, atravessando o próprio poema.
Voltando ao primeiro verso, o “amor que desce” parece estar em contradição com esses elementos de leveza, de suspensão, mas podemos conectá-lo ao Anjo que, com as asas carregadas de terra, está em queda. Esse anjo parece evocar o mítico Ícaro que se choca contra as pedras após a cera de suas asas derreter por ele se aproximar muito do sol, e também estar em convergência com o conhecido Anjo da História de Walter Benjamin, paralisado diante da visão do monte de escombros que é a acumulação dos desastres da História, mas impelido para o futuro por uma tempestade que sopra do passado.
Esse anjo-amor pode ser visto como uma espécie de daimon, um ente intermediário com a tarefa de ligar os homens aos deuses. Talvez por aí entendamos o título “Exorcismo”, que significa a expulsão de um espírito demoníaco que possui uma pessoa, um processo de purificação. No poema, entretanto, o sentido da palavra parece também fazer referência à sua etimologia grega de “prestar juramento”. Em vez de expulsar, separar, afastar, o amor aparece como aliança, elo entre o alto e o baixo (o céu e a terra), indicado já pelo movimento de “descida”, as penas cheias de terra do
anjo, entre passado e futuro, juramento de fidelidade a um amor que não pôde ser vivido na sua integralidade porque o “peso foi perdido”, os amantes foram mortos. Este amor que lembra a figura de Janus, o deus de duas faces, olhando para o passado e para o futuro, se mostra como possível elo, união de tempos e espaços e pessoas, próximo do sentido de “fidelidade à honra de estar vivo” que Sena refere em outro poema.
Ouçamos agora a versão musicada deste poema por Luis Cilia: